Primavera Sound 2019 – A transição para o mainstream

Dino d’Santiago deu oficialmente início à edição de 2019 do NOS Primavera Sound. Música com influências claras das raízes de Claudino—sejam elas de nascença, ou tendo-se desenvolvido ao longo da carreira que já conta com mais de dez anos. As sonoridades quentes tentavam combater a meteorologia que teimava que não era Junho, e para surpresa de todos os calendários parecia ter razão.

Entre Christina Rosenvinge e Men I Trust, criou-se um bloco indie muito comum no NOS Primavera Sound. De seguida aparece Mai Kino, claramente mais na área da eletrónica, mas ainda com um componente etérea.

A falta de escolha, juntamente com o mau tempo, poderá ter contribuído para as audiências pequenas que pareciam já ter mais interesse por goodies do que pela música propriamente dita. Mas é o fado de qualquer festival que seja tão acessível geograficamente.

Depois disto? Mais Indie Rock, para surpresa de ninguém. Afinal, é o NOS Primavera Sound. Seguem-se Built to Spill e Miya Folick. E até aqui tudo morno em termos de música e frio de temperatura.

São músicos competentes, que acredito até se poderiam destacar num alinhamento diferente. Mas as suas semelhanças acabam por criar um efeito claustrofóbico musical, o que talvez explicará o porquê de tanta gente decidir coroar a restauração como palco principal interino.

De seguida é mais do mesmo, mas com mais nome, com a única “surpresa” ser Jarvis Cocker a tocar às 21 horas. Jarvis Cocker veio representar o seu projeto “a solo mas que não é bem a solo” que é já típico de frontmen com bandas em hiato. A meio de Maio, o projeto Jarv Is… lançou o single “Must I Evolve?”. No tema, a pergunta é feita várias vezes, com a resposta a ser sempre afirmativa. No palco, a resposta é menos confiante.

Sem conseguir fazer juízos de valor, Jarvis Cocker ainda tem muito de frontman de Pulp. O estilo frequentemente conversacional, a super-consciência existencial e o humor sarcástico continuam a fazer parte tanto da música como da persona em palco.

E para variar um pouco, mais uma pitada indie pop. Com um pouco mais de R&B—que faz todo o sentido como transição entre o cartaz que existiu até aquele momento e Solange—mas ainda muito sob o domínio do indie pop atmosférico. Mormor é Indie maduro, provavelmente quase a estragar ou a dar o salto para o mainstream.

Às 22:15 há Allen Halloween. Às 22:20 Danny Brown. Até agora não houve hip-hop, ainda menos houve hip-hop escuro e abrasivo. Mas de repente os há ao mesmo tempo, em palcos diferentes.

Dum lado, temos Allen Halloween. Conhecido do público português por ter continuado o movimento iniciado em 93 pelos Da Weasel – mais os do More Than 30 Motherfuckers do que de Amor, Escárnio e Maldizer – mistura elementos de rock com hip-hop, com um foco lírico que deixou de ser norma na última década.

Do outro lado, temos Danny Brown. Artista sem particular ligação a Portugal, acredito que a visitar-nos pela primeira vez, que ganhou nome pela forma como misturava géneros e pela sua excentricidade.

Depois de aproximadamente 4 horas sem opções fundamentalmente diferentes—claro que Jarvis Cocker é diferente de Mormor e é justo que alguém goste de um e não do outro, mas se alguém simplesmente não gostar de indie pop, a situação fica complicada—Allen Halloween e Danny Brown entram em palco com aproximadamente 10 minutos de diferença. O público que veio por Danny Brown e poderia descobrir Allen Halloween, fica sem o fazer. O público que conhece e gosta de Allen Halloween e que ajudaria a compor o concerto de Danny Brown, não o faz.

Danny Brown, por serem muito mais raras as visitas, acabou por receber o voto de confiança. Começando com a “Iron Man” dos Black Sabbath, que rapidamente se transformou em “Die Like a Rockstar” tirada do XXX de 2011, o concerto pareceu prometer. Mas a estrutura do concerto simplesmente não era coerente com o público.

Danny Brown e Skywlkr (o seu DJ) estão claramente habituados a concertos maiores com um público mais participativo. O maior exemplo disto terá sido provavelmente “Ain’t it Funny”. O tema lançado em 2016 (que conta com um vídeo incrível realizado pelo Jonah Hill que não poderia recomendar mais) com uma componente altamente sarcástica e niilista, tem um refrão com uma estrutura que mistura perguntas retóricas, negação e desespero. Esse refrão costuma ser partilhado entre o público e Danny Brown. Danny Brown fez a parte dele, mas num palco tão grande e numa noite tão fria, a energia que se fazia sentir nas primeiras filas não foi suficiente para suportar um público tão disperso.

Fica principalmente o profissionalismo de Danny Brown e Skywlkr que não desistiram por um único segundo. Inflexíveis no seu estilo, mais por confiança que por teimosia, foram um exemplo de persistência perante um público que não parecia necessariamente preparado.

De forma quase imediata, segue-se Tommy Cash. O artista com ascendência da Estónia, Rússia, Ucrânia e Cazaquistão, não poderia ser mais a epítome do que o NOS Primavera tem sido nos últimos anos. Conceptual e experimental, conseguiu captar a atenção do público como poucos tinham conseguido até aquele momento.

A forma mais simples de explicar Tommy Cash é provavelmente imaginando-o como o que seria de Watkin Tudor Jones se Max Normal tivesse existido num país soviético em vez da África do Sul. Em vez de uns Die Antwoord influenciados pela cultura Zef, teríamos um projeto que acaba por satirizar a cultura capitalista através de uma perspetiva completamente diferente, influenciada.

Algures entre o Trap, Techno e o Pastiche, encontramos Tomas rodeado de imagens pornográficas, com calças de fato de treino e umas t-shirts rasgadas, a animar o público, num misto de surpresa e desafio constante.

Restava Solange. Que dos cabeças de cartaz é discutivelmente o nome mais tradicionalmente NOS Primavera Sound. Depois de um dia relativamente despido de produção, Solange destacou-se imediatamente em termos visuais.

Muitas vezes descontada como “a irmã da Beyoncé” ou só “mais pop”, Solange teve o trabalho complicado de lutar contra esses estigmas. Pela afluência do público, notou-se claramente que o público do NOS Primavera Sound estava a mudar.

Noutros anos, mesmo tendo em conta o lançamento de When I Get Home em Março deste ano, a resistência à presença mainstream teria sido muito maior. Agora essa presença parecia ser a base do festival…

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O segundo dia começou em estéreo e em Português. ProfJam e Surma trouxeram uma mistura de público que permitiu que o recinto estivesse muito mais composto desde a abertura de portas.

O dia recebeu nomes já conhecidos dos palcos portugueses. Courtney Barnett voltou, depois da estreia (?) em 2014, no mesmo festival. Meia hora depois, Sons of Kemet estavam mais uma vez em Portugal, desta vez em versão XL por causa dos graves.

Sons of Kemet trouxeram 4 bateristas, um saxofone e um trompete. Depois do magnífico concerto no Milhões de Festa há uns anos atrás, voltaram a trazer sorrisos e jazz a Portugal, com um novo álbum lançado em 2018 Your Queens is a Reptile.

O concerto teve até direito a encore, tal foi a festa. A felicidade é verdadeiramente contagiante quando a banda britânica sobe ao palco, criando um ambiente difícil de explicar por palavras. É um misto de relaxamento e entusiasmo que poucos artistas conseguem criar, especialmente de forma instrumental.

Antes de mais, quero só esclarecer que Steve Albini é sem dúvida um génio que mudou o panorama da música e a sua indústria. Mas Shellac subiram ao palco e tocaram. Eu percebo que tendo em conta a aversão inicial dos Shellac de tocar em festivais, a sua presença é especial. Mas quantas vezes pode algo ser especial antes de o deixar de ser? 8 anos, 9 concertos. Sim, porque este ano também houve um concerto surpresa…

J Balvin subiu ao palco e tocou músicas que toda a gente “conhecia”.

Ao mesmo tempo, os Fucked Up ficavam com os restos. Poucos mas bons, faziam mosh com reggaeton a ecoar na distância. Como diria Danny Brown “ain’t it funny how it happens?”.

Com um alinhamento baseado no último álbum da banda, que data de 2018 mas acumula muita informação dada a sua demora, a banda de Damian Abraham foi a alternativa para quem não tinha fome nem apetite de J Balvin.

Fucked Up têm uma dinâmica que se assemelha ao “good cop, bad cop”. São tão abrasivos quão carinhosos. Se o vocalista nos berra ao ouvido as verdades que não queremos ouvir, os backing vocals sussurram ao ouvido que tudo vai ficar bem.

Pelo meio de muita gratidão, o concerto acaba e muita gente escolhe ficar no mesmo lugar para Interpol.

Quanto a Interpol não vou escrever muito, foi principalmente um espetáculo de serviços mínimos com pouca energia, facto exacerbado pela estrutura do Palco Seat.

A seguir veio Peggy, que deu, na minha opinião, o concerto do festival. Abrindo com o verso da colaboração com Denzel Curry em “Vengeance”, foi uma fonte de energia, autenticidade (por vezes “simulada”) e humildade. O detalhe de manualmente clicar play e stop no início e fim de cada música adicionou ao ambiente que se fez sentir num palco que primou mais pela energia que pela afluência.

Embora conte já com mais de 10 anos de carreira, Barrington Hendricks focou-se principalmente (exclusivamente?) em temas lançados nos últimos 3 anos, fruto da atenção dada pela crítica a Veteran de 2018.

A interpretação é muito mais crua que nas versões de estúdio, uma diferença que tem a sua epítome em “1539 N. Calvert” onde o flow relaxado do álbum evolui para gritos de uma alma desnudada. Essa energia materializava-se em frequentes viagens às grades e ao público, onde Peggy parece mais à vontade. Somos criaturas de hábitos, e até há pouco tempo os seus espetáculos eram bem mais pequenos, com pouca ou nenhuma distância entre ele e o público.

Há tempo ainda para um freestyle e para um desabafo ao jeito de crowd work. “Não devia tocar esta música”, diz Peggy, embora a mesma seja parte do alinhamento de maior parte dos festivais – incluindo da versão original do NOS Primavera Sound. Segue-se então “I Cannot Fucking Wait Until Morrissey Dies”, um hino ao conflito de culturas que é tema recorrente no trabalho de Barrington.

Entre clichés como “melhor público” ou “melhor concerto da tour”, fica a dúvida quanto à autenticidade de Peggy. Quanto à sua capacidade de atuar, ficam apenas certezas.

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Vindos da Suécia, os Viagra Boys marcam-se principalmente pelo conceito. Uma sátira de um pouco de tudo com uma apatia generalizada. Sentido de humor apurado e mais senso comum do que mostram, criaram uma personagem coletiva que é tanto uma homenagem como um ataque ao punk – mantendo o equilíbrio, umas vezes mais do que outras.

É uma banda que em qualquer outro ano de festival (com o corpo de trabalho atual), poderia dar muito mais.

Seguiu-se Jorge Ben Jor, uma personalidade maior que a vida, com um corpo de trabalho realmente inacreditável – como se podia notar pela forma como o público trocava olhares ao tentar perceber porque é que conhecia tantas das músicas. A resposta é a influência que teve no panorama Brasileiro, como poucos artistas tiveram, certamente nenhum que goze do seu nível de “anonimato”.

O ponto alto, como se imaginava, foi em “Más que Nada”. A história é conturbada. A música foi lançada em 63 por Jorge Ben Jor, sendo elevada depois por Sérgio Mendes em 66. Ao público atual, foi maioritariamente introduzida 40 anos depois, quando os Black Eyed Peas fizeram a sua versão, juntamente com Sérgio Mendes.

Em bom português, “primeiro estranhou-se, depois entranhou-se”. As caras de confusão deram lugar aos sorrisos, algo que aconteceu várias vezes ao longo do concerto. Como a própria organização disse, Jorge Ben Jor é “um artista conhecido desconhecido” dado o número que músicas que toda a gente conhece sem o conhecer a ele.

Amyl and the Sniffers seguiram-se, para uma mudança completa de estilo. Punk australiano que incorpora temas da cultura Bogan, com umas magníficas 3 mullets em palco. Com semelhanças a Viagra Boys, o seu punk é mais cru, com uma maior influência cultural do meio que os rodeia normalmente.

Kate Tempest foi provavelmente o concerto mais subvalorizado do festival. Com Rosalía no palco principal a criar uma das maiores enchentes do festival, Kate e o seu hip-hop foram relegados para um Palco Seat que mais uma vez enfatizava a falta de pessoal.

Crítica social afiada, batidas minimalistas e um flow tipicamente londrino (com bases semelhantes a artistas como Plan B), todos apreciados por quem lá esteve mas que merecia mais. A emoção de Kate era notória e devia ter sido apreciada por mais gente. Ficou o desejo de um concerto em nome próprio, depois deste concerto e do Paredes de Coura, e da edição da sua poesia em Português.

No seu cômputo, o festival foi feito de contradições. Como alguém que está a tentar mudar mas demasiado agarrado aos seus velhos hábitos. Fazer um festival com cabeças de cartaz claramente mainstream como J Balvin, Rosalía e Solange é legítimo. Tal como é fazer um festival que procura servir como um serviço de curadoria presencial, procurando dar a conhecer nomes que não serão do conhecimento do público em geral. Mas juntar os dois conceitos acaba por negar os benefícios de ambos.

Texto para festivais.pt
Fotografia por Graziela Costa